Após 30 anos, Clovis Tramontina sai de cena: Vou ajudar a formar líderes

Clovis Tramontina pode até ser filho e neto de  ferreiros, já que o avô Valentin e o pai Ivo eram homens do chão de fábrica. Ainda assim, o papel que o atual presidente teve à frente da empresa foi mais o de um vendedor e de líder carismático. Conhecido pelo bom humor e pelo lado emocional, Clovis é o tipo de empresário que apostou nas relações com as pessoas para desenvolver lideranças e comanda uma empresa que nunca abriu mão de deixar a serra gaúcha. “As pessoas fazem seu projeto de vida aqui dentro”, disse em entrevista à EXAME durante visita às instalações principais da empresa em Carlos Barbosa, na serra gáucha. Depois de 30 anos à frente da empresa centenária, ele passa o bastão para seu ex-vice presidente, amigo e sócio, Eduardo Scomazzon.

Mesmo sem o sobrenome Tramontina, Eduardo também tem a empresa na história da família. Ele é filho de Ruy Scomazzon, sócio e amigo de Ivo Tramontina, que formalizou e profissionalizou a empresa nos anos 50. “A empresa tem que continuar entregando aquilo que ela promete, que é qualidade. Outra coisa que eu acho que a comunicação moderna tem que pensar é: a empresa vai vender que tipo de valores?”, diz Clovis. O executivo também se gaba de a empresa ter se expandido sem necessidade de abrir capital, um fruto, segundo ele, do fácil acesso ao crédito e da reputação. “Nós temos muito crédito. Não houve necessidade de abrir capital. Muita gente já quis abrir o capital da Tramontina e nós dissemos não. E no futuro? Não sei”.

Aos 65 anos, a saída de Clovis do comando da empresa não significa uma aposentadoria, mesmo com o avanço da esclerose múltipla, que ele convive desde a juventude. Para o empresário, seu papel agora é de ajudar na formação de lideranças, sem as obrigações diárias de comandar a marca centenária. Veja abaixo a entrevista completa:

O que o senhor espera do Eduardo Scomazzon como presidente? 

Eu sempre digo que ele é o maior QI da Tramontina. Ele é um sujeito que tem uma inteligência fora de série. E com certeza vai fazer uma coisa mais metódica do que eu. Eu sou mais divertido. Eu sou mais impulsivo, imediatista e emocional. E o Eduardo vai ser mais racional. Mas tem uma coisa importante. Nós dois valorizamos as pessoas, mas ele não vai ser um sujeito expansivo que nem eu. Ele é mais como o pai dele.

Quais são os planos do senhor para depois de sair da empresa?

Eu vou sair da presidência, mas eu não vou deixar de trabalhar. Como sinto falta de liderança, acho que eu tenho capacidade de começar a formar lideranças. Conversando com várias pessoas, eu vejo que faltam lideranças políticas e empresariais. Eu quero um cara que tenha valores, que pense no que pode contribuir. Quero líderes verdadeiros, que pensem em como a sociedade pode crescer. Não em crescer sozinhos.

A Tramontina tem uma cultura de clã e é uma empresa familiar que incentiva funcionários a indicarem pessoas da mesma família. Por isso é bom?

Imagine que tenha quatro pessoas da mesma família trabalhando e alguém decide fazer uma greve, por exemplo. Se para outros está tudo bem, eles vão perguntar por que um deles quer fazer greve. Existe uma questão forte do pertencimento e uma certa cobrança entre um e outro. Quanto melhor essa empresa for, melhor para todos nós. Por isso temos uma preocupação grande com a atuação na região. Quanto melhor for a cidade, melhor para os nossos funcionários. Algumas pessoas questionam se esse modelo de indicações não limita nosso crescimento e contratação, mas a gente oferece muita capacitação e oportunidades. As pessoas fazem seu projeto de vida aqui dentro.

Se o senhor não tivesse sido presidente, e antes um vendedor, que outra função o senhor se enxergaria fazendo na Tramontina, em uma dessas fábricas?

Tem duas áreas que eu gosto. A área comercial e de Recursos Humanos. Eu adoro pessoas. Se eu não fosse presidente, com certeza eu seria gestor de RH. As pessoas fazem a diferença. Se você não tiver uma equipe competente, você pode ter os melhores produtos, mas não daria certo.

Voltando 40 anos no tempo, a ida do senhor para São Paulo para conquistar novos clientes fez a Tramontina despontar na diversificação. Como o senhor entendeu que era esse o caminho?

A diversificação começou muito na intuição e espontaneamente. Meu pai e o seu Ruy uma vez foram para o japão e compraram um monte de aço inox e não sabiam o que fazer com o aço. Aí receberam a sugestão do engenheiro Mário Bianchi de fazer talheres. Em outra viagem, foram para a Itália comprar matrizes. Eles viram uma matriz de panela e o vendedor disse: ‘Ah, isso aí se o senhor quiser levar, leva. Coloca no pacote’. E meu pai disse trouxe. Assim começaram a fazer as panelas. Quando eu cheguei em São Paulo, eu criei um grupo de promotoras de vendas que apresentam os produtos e que também ouvia muito o consumidor para nos dizer como fazer e o que fazer. Nós estávamos já fazendo pesquisa científica sem saber. Empíricas, mas que se tornaram científicas.

Por que dar tanta autonomia para as fábricas? Nunca foi considerado um terreno só, com 10 unidades ali, por exemplo?

A fábrica é dos diretores, não é dos acionistas. A fábrica é do Waldir, do Felisberto… Na unidade Teec, por exemplo, que é de equipamentos e tecnologia para a cozinha, eles decidem o que fazer dentro desse segmento. A região aqui da Serra tinha uma empresa muito forte do setor metalúrgico na época do meu pai chamada Eberle. Era uma fábrica fantástica, que produzia de tudo. Motores, panelas, talheres e até espadas para a guarda da Presidência da República. Eles viram que aquilo estava virando um monstro. E quando nós fizemos a experiência de cada um se especializar na linha de produtos, vimos que dava muito certo. Uma unidade só não ia funcionar, com certeza. Cada uma tem seus próprios problemas e suas soluções. Se você tem um problema localizado, você não prejudica as outras. Trata daquela unidade especificamente, de forma pontual.

Essa expansão descentralizada não precisou de mais capital?

Até hoje, a Tramontina toca com o seu próprio capital e de empréstimos, de bancos que financiam a gente e até fornecedores. Nós temos muito crédito. Não houve necessidade de abrir capital. Muita gente já quis abrir o capital da Tramontina e nós dissemos não. E no futuro? Não sei. Eu tô saindo agora e na minha gestão não precisou abrir capital. E também nunca fizemos um investimento que a gente viu que não teria condições de fazer. Se, por exemplo, a gente quisesse comprar a WEG. Aí nós teríamos que ter um chamamento de capital porque não teríamos condição disso.

Como o senhor explica o sucesso das exportações? Como vocês conseguem vender para todas as partes do mundo?

A visão do meu pai e do Ruy sempre foi de dizer: nós somos indústria e não mudamos o foco. Tudo que iríamos vender, nós iríamos produzir e comercializar. Nos anos 60, o Brasil era fechado. Não tinha concorrência e o preço era o que a gente quisesse. O Ruy sabia que não iria continuar assim. Ele sabia que precisava exportar, mas para isso tinha que baratear o preço e melhorar a qualidade e baixo custo. Não foi fácil. A primeira exportação foi em 1969 e aos poucos foi para os outros países da América latina. Nos anos 80, o Eduardo disse que a gente precisava ampliar as exportações e entrar no mercado americano. Abrimos uma divisão lá, no Texas, e com isso conquistamos clientes como Walmart, Costco e Bed Bath and Beyond. Nisso surgiu a globalização. Assim, onde o Walmart ia, onde a Cosco ia, a Tramontina ia junto.

E no mercado interno? Por que barrar os produtos chineses deu certo?

No final dos 80, a Tramontina perdia o mercado principalmente no mercado de ferramentas. Fomos para a China e vimos o seguinte: com esses caras, nós não vamos conseguir concorrer. Um dos diretores queria elevar a qualidade do produto, criar uma linha PRO das ferramentas. Eu não acreditava nisso, mas ele insistia. Ele foi adiante e melhorou a qualidade do produto. Com a melhora da qualidade, começamos a concorrer com eles. Na produção de garfos e facas não aconteceu isso porque nós já somos competitivos com eles. Nós já tínhamos marca, competitividade e distribuição. Em 2004, em uma visita à China, vimos que tínhamos que lançar uma série de produtos com preço chinês. Para isso, conversamos com as fábricas para reduzir custo e até com os clientes para reduzir preço. Nessa viagem, eu dizia para clientes que foram visitar: não compre panelas aqui, que nós vamos fazer preço para vocês. Conseguimos lançar uma linha de panelas de INOX que no mercado custa 199 reais e explodiu as vendas. Aí, a Tramontina mudou de patamar em volume. Aí nós vimos que tinha mercado para competir, bastava ter preço e qualidade.

Como entra a questão da automação no meio dessa questão de competitividade com a China?

Quando começa a exportação e a força da China, o Ruy sabia que deveríamos fazer algo no sentido da mão de obra. Se nós colocássemos só mais gente, não seríamos competitivos. Ele brincava que isso era porque os chineses tinham muito mais gente do que nós. Mas antes disso, em 1963, ele foi à Europa e trouxe uma máquina de levantar peso. Antes, quem levantava peso na Tramontin era o Lindolfo Crete, que era um homem muito forte. Não tinha empilhadeira. A segunda coisa foi o carrinho de mão. A automação começou assim.

Nos últimos 30 anos, a indústria perdeu representação no PIB do país, mas a história foi diferente para vocês? O que explica isso?

Nós sempre fomos indústria e continuamos a ser. O que uma outra marca poderia fazer? Importar todos os produtos da China e colocar a etiqueta. Eu poderia fazer isso. Mas agora , por exemplo, inauguramos uma fábrica de porcelana. Ela está dentro do escopo nosso de casa. Temos uma coisa que é a marca e outra coisa que é a distribuição. Temos 18 unidades no exterior de distribuição. Em 72 horas, estamos em todo o mundo. Nós temos uma coisa que meu pai e Ruy criaram, e eu Eduardo concordamos que é de a marca ser única. Uma picareta leva a marca Tramontina, um talher com acabamento Tramontina. O que tem em comum é a qualidade. Toda essa gama de produtos com um nome só é um diferencial, mas o desafio é de que todos os produtos têm que ter a qualidade comprovada para aquela função.

Como a questão ambiental e as políticas de ESG influenciam as políticas do futuro da Tramontina?

Na época da minha vó, no centro de Carlos Barbosa, o lixo da Tramontina era o pior lugar do mundo para trabalhar. Todo mundo falava mal e dizia que era terrível o trabalho. Era uma porcaria, mas isso era a metalurgia da época. Isso mudou muito. Nós temos um aterro monitorado hoje, mas esse aspecto ambiental é um grande desafio. Estamos atentos a todas as orientações ESG. No entanto, algumas questões como a diversidade e inclusão de negros é uma grande desafio porque tem que ser levada em conta a microrregião do Rio Grande do Sul em que estamos. Hoje, também trabalhamos forte em reúso de água e captação de energia solar. Chegamos a considerar instalar uma fazenda de energia eólica e solar na cidade de Encruzilhada do Sul que forneceria energia para todo o grupo e contratamos uma consultoria americana para planejar isso. Seriam 500 milhões de reais. Na época, os estudos apontaram que não valeria a pena devido a baixa produtividade e poucos estímulos pro setor, mas temos considerado opções. Fazendo uma coisa aqui e ali. O consumo de energia é muito alto. Também estamos pensando em logística reversa e a agência de design de produto da minha filha tem trabalhado para diminuir as embalagens. Mas temos também que mostrar pro consumidor que a embalagem não é tão necessária. Hoje, sem uma embalagem bonita, não vende.

Quais foram as referências teóricas e de negócios que o senhor se inspirou?

A Coca-Cola foi uma empresa que sempre me inspirou. Eu não conhecia ela de perto, mas sempre li muito e pensava que um dia nós seríamos como a Coca-Cola. Outro pessoal que eu acompanhei muito era, da 3G Capital, o Beto Sucupira, o Marcel Telles e o Lemann. Li os livros deles e sempre gostei. Achava eles muito arrojados. E isso antes dele ser o que hoje são. No nosso ramo, eu gostava muito da antiga Meridional. Quanto ao modelo de gestão, eu gostava do modelo alemão, pela disciplina. Já do Japão e da Coreia nós trouxemos o conceito da qualidade total.Eu tenho seis netos. Então, eu tenho que saber o que comunicar para a geração da minha neta Laura continuar a valorizar a marca.

Para o senhor, o que é um bom design de produto? 

Um legado do engenheiro Mário Bianchi, que foi designer da Tramontina, é que um bom design enche os olhos das pessoas. Mas não pode ser um design que não serve pra nada, né? Tem que ser uma coisa que você possa aproveitar a função.

O que é que a Tramontina precisa comunicar hoje e para o futuro, além do lançamento individual dos produtos? O que está no norte do marketing de hoje?  

Eu defendo que a empresa tem que continuar entregando aquilo que ela promete. Isso é muito importante. O que ela promete, ela tem que entregar. Eu vi, por exemplo, um anúncio de um carrinho de mão muito caro. Ele não vale o que estava ali anunciado. Isso seria uma propaganda perigosa, porque o cliente vai comprar e vai falar mal de nós. Então tem que entregar aquilo que promete e tem que valer a pena.

Outra coisa que eu acho que a comunicação moderna tem que pensar assim, uma empresa vai ter que vender valores, né? A Tramontina tem sim uma atuação nessa área ambiental e vejo que nós temos que comunicar isso melhor, porque também vai ser o nosso diferencial.



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