Com desmatamento em alta, uma busca pela carne inocente

As queimadas e o desmatamento na Amazônia horrorizam o Brasil e o mundo. No dia 18 de novembro o governo anunciou os dados alarmantes do sistema de monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Eles registram o maior crescimento na taxa anual de desmatamento dos últimos 22 anos. A floresta perdeu quase 10 mil quilômetros quadrados entre agosto de 2018 e julho de 2019. Além de criminoso, esse desmatamento é um risco para cada um de nós. Afinal, a Amazônia é uma garantia de estabilidade do clima no mundo. Por isso, o que acontece por lá interessa à sobrevivência da nossa civilização. No ano que vem, com a chegada da próxima estação de seca, a partir de junho, a Amazônia vai arder de novo. O desmatamento pode ter um novo pico, talvez maior ainda pela ausência de medidas para conter a devastação e pela presença de incentivos às atividades predatórias.

O que isso tem a ver com a nossa carne? Tudo. Cerca de 40% do gado brasileiro está na Amazônia. Cerca de 90% do desmatamento serve para abrir pastagens. Parte delas são abertas em terras privadas, quase sempre sem autorização legal. A outra parte das pastagens são abertas em florestas públicas invadidas por quadrilhas de especuladores de terras. Os grileiros usam a pecuária para ocupar terras públicas invadidas e destruídas e a criação de gado está associada a trabalho escravo e ao aquecimento global. Isso tudo assusta os investidores. O documentário Sob a Pata do Boi, de Marcio Isensee e Sá, conta isso em detalhes. Essas revelações deixam os consumidores com pé atrás antes de escolher a picanha de uma marca ou outra no supermercado.

Num ambiente dominado pela ilegalidade, resta ao produtor provar que não está ligado às irregularidades. É claro que pela lei existe a presunção de inocência. Mas no âmbito da comunicação e do marketing não é assim. Na percepção pública, você precisa na prática se provar inocente se atua numa região e num mercado dominados pelo crime.

A imagem do setor da pecuária ficou seriamente comprometida com uma série de denúncias de ilegalidades. Em 2017, a operação da Polícia Federal “A Carne é Fraca”, que investigou empresas acusadas de vender carne adulterada, ganhou os noticiários e lançou dúvidas na comunidade internacional sobre o futuro da indústria da carne no Brasil. Na mesma época, o Greenpeace também publicou um relatório em que percorreu a cadeia de produção e fez o elo entre pecuária criminosa e o supermercado. Desde então, o assunto não saiu da mira da imprensa e da preocupação dos investidores. No último mês, por pressões de ONGs e do setor financeiro, o Carrefour pediu informações aos frigoríficos sobre o desmatamento da Amazônia, o que sinaliza que os supermercados também devem começar a fazer cobranças nesse sentido.

Mas essa discussão começou muito antes. No Pará, o maior produtor de carne da região Norte do país, os acordos pela regularização começaram há quase dez anos, quando o Ministério Público Federal denunciou que a criação de gado no Estado causava sérios danos ambientais à Amazônia. As irregularidades reveladas eram tão graves que, na época, dezenas de redes de supermercados suspenderam a compra de produtos bovinos da região, o que provocou a paralisação de grandes abatedouros. Diante disso, em negociação com o Ministério Público Federal (MPF), cerca de 100 frigoríficos, empresas calçadistas e outras que trabalham com produtos cuja matéria-prima vem da pecuária assinaram Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) se comprometendo a fazer uma série de exigências ambientais e sociais aos seus fornecedores.

Os acordos são acompanhados de perto pelo MPF e, entre as exigências previstas, está a de que todas as propriedades rurais que pretendam negociar no mercado da pecuária não sejam flagradas nem processadas por desmatamento ilegal. Na última semana (12/11), o MPF divulgou o resultado da segunda leva de auditorias dos acordos. Os frigoríficos avançaram no cumprimento da legislação ambiental, mas isso ainda não é suficiente. Durante o anúncio dos dados o procurador Daniel Azeredo, um dos responsáveis pelos casos, afirmou que nenhuma empresa que compra da Amazônia pode dizer que não tem gado vindo de desmatamento em sua cadeia produtiva

Há uma lacuna importante no sistema de monitoramento. Para entender isso, é preciso entender como é a cadeia de produção da carne. O bezerro geralmente nasce numa fazenda, cresce em outra, engorda em outra e só aí é vendido para o abatedouro. Os abatedouros (ou frigoríficos), no entanto, têm como hábito conferir a conformidade fundiária e ambiental só da fazenda que vende direto para eles. As outras fazendas fornecedoras terceirizadas não estão sendo monitoradas. E é lá que estão as atividades ilegais.

A Global Witness, ONG internacional que há anos investiga o desmatamento pelo mundo e esteve em Belém quando os dados foram divulgados, vê com bons olhos os esforços do MPF no monitoramento da situação, mas ressalta que é fundamental que os frigoríficos façam mais para libertar suas cadeias de fornecimento de desmatamento e que seus financiadores internacionais também tomem medidas imediatas. Para Mariana Abreu, investigadora da Global Witness, essas empresas estão ansiosas para dizer como essas auditorias destacam seus bons desempenhos – mas as novas estatísticas contam apenas parte da história quando se trata da destruição da Amazônia, já que nem olham para as partes mais vulneráveis da cadeia de suprimentos, como os fornecedores indiretos.

“As instituições permitem que o dinheiro seja injetado em empresas como JBS e Minerva”, diz Mariana Abreu. “Essas empresas devem assumir a responsabilidade e os governos internacionais devem responsabilizá-las pedindo uma regulamentação mais forte, com as devidas diligências. Isso é fundamental se quisermos parar a destruição acelerada da Amazônia brasileira, nosso clima e danos às comunidades que vivem e dependem desta floresta crucial.” Tudo isso gera uma tremenda suspeição sobre a carne brasileira.

Mas existem iniciativas para produzir carne na Amazônia de forma correta. Caio Penido é coordenador do grupo de trabalho da pecuária sustentável, uma organização de pecuaristas que defende medidas razoáveis para ter uma pecuária decente. Segundo ele é imprescindível que todos respeitem o Código Florestal e as regras de desmatamento legal, de acordo com a região da fazenda. “O desafio agora é encontrar outra forma de conservar toda essa biodiversidade, substituir a estratégia de conservar por ‘moratórias’ e criar mecanismos de valorização da floresta viva, como pagamento por serviços ambientais, créditos de carbono e ecoturismo”, diz.

O Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) tem trabalhado com iniciativas regionais já estabelecidas e que promovam sistemas de produção mais sustentáveis, conciliando produção e conservação. O Programa Novo Campo, acompanhado pela ONG, é um bom exemplo. A iniciativa atua em fazendas de pecuária de corte no estado do Mato Grosso e fomenta práticas de intensificação sustentável da pecuária, por meio da adição de boas práticas e recuperação de áreas de pastagem degradadas. Além de não desmatar e reduzir e a emissão de gases do efeito estufa, a expectativa é que as fazendas participantes consigam aumentar em até cinco vezes a quantidade de carne produzida.

É claro que dá para criar bois com tudo correto na Amazônia. Quem ainda tem dúvidas pode perguntar para o pessoal da Pecuária Sustentável da Amazônia (Pecsa), empresa que gerencia as fazendas, com boas práticas ambientais e bom manejo do gado. O trabalho deles começou quando um grupo de pesquisadores percebeu, durante um estudo, que cuidar melhor do gado e da floresta permitia aumentar a receita da atividade. Eles então conseguiram captar 11,5 milhões de euros de um fundo de investimento de impacto e com esse dinheiro criaram a Pecsa para investir em recuperação das fazendas de pecuária. Funciona assim: a empresa assume a gestão da fazenda por um período de seis a sete anos e, ao final desse período, devolve a fazenda ao proprietário com todas as benfeitorias e as novas técnicas de gestão.

No tempo em que a Pecsa fica na gestão da fazenda, investe pesado em melhorias: cerca e reforma a área de pastagem, separando-a da reserva legal e das áreas de proteção permanente, e constrói um sistema de captação e estocagem de água e bebedouros em pasto, ajudando a recuperar a mata das margens dos rios e nascentes. Além disso, a empresa faz o replantio da vegetação nas áreas de preservação permanente danificadas e da reserva legal devida (na Amazônia, é preciso conservar floresta em 80% de cada propriedade). O custo é alto, mas eles garantem que os resultados compensam: a capacidade da fazenda aumenta porque ela passa a produzir mais sem expandir a área ocupada e a produtividade também cresce porque os bois amadurecem mais rápido para o abate, graças à rotação do pasto, o suplemento alimentar e os cuidados de higiene. Com tudo isso as finanças também ganham e o grupo garante que a margem de lucro nas fazendas que adotam as melhores práticas costuma experimentar um crescimento considerável.

Se existe uma desconfiança crescente da pecuária, se está claro que o sistema atual de verificação é falho, e se é possível produzir corretamente, o que falta agora é um processo realmente completo e confiável para monitorar toda a cadeia. Quem conseguir montar esse sistema finalmente irá permitir que se compre carne livre de desmatamento.

Para Paulo Barreto, pesquisador sênior do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o ideal é implantar um sistema de rastreamento do gado desde o nascimento. Ele lembra que já existe tecnologia pra isso. Bastaria, por exemplo, adaptar o sistema que já é utilizado para controle de doenças na carne exportada para a Europa. “Falta uma liderança, um ‘lobby do bem’, para fazer isso acontecer”, observa. Um frigorífico sozinho não consegue resolver mas, para Paulo, se os grandes grupos se juntarem e pressionarem o governo, existem várias ferramentas para fazer isso e exemplos que dão certo no mundo todo, como os títulos verdes. “Enquanto o mercado continuar comprando carne de origem ilegal, a coisa não vai andar. O setor financeiro também poderia pressionar mais. Eles sabem do problema, mas ninguém está dando o empurrão para sair dessa inércia.”
Um sistema que finalmente separe os produtores regulares dos que agem criminosamente no campo das fazendas terceirizadas terá o potencial para atacar o principal vetor de desmatamento e violência na Amazônia. Também dará segurança para consumidores, investidores e empresas decentes na cadeia da carne. Quem conseguir montar um sistema como esse primeiro vai ganhar mais, vendendo carne gostosa e sem culpa.

Com Angélica Queiroz

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