Novo governo, velhos problemas: CGU deve agir para dar transparência ao lobby 

Agendas públicas de compromissos são um dos principais instrumentos de transparência adotados por autoridades em diversas partes do mundo. Do Papa Francisco ao presidente Emmanuel Macron.

No Brasil, o direito de saber sobre atividades da administração pública já é direito expresso desde a Lei de Acesso à Informação (LAI), sancionada em 2011. Em 2013, a Lei de Conflito de Interesses tornou isso ainda mais claro ao exigir divulgação ativa de compromissos de autoridades públicas federais de alto escalão.

Por força de um decreto presidencial de 2021, atualmente 2.490 funcionários do governo federal são obrigados a divulgar suas agendas no sistema e-Agendas, gerenciado pela Controladoria-Geral da União (CGU), que monitora e disciplina o assunto.

Implementado somente no final da administração de Jair Bolsonaro, o decreto estabelece normas e procedimentos que ampliam a transparência sobre a rotina de autoridades federais, pensadas sob um pacote legislativo que buscava aumentar o controle sobre a influência do setor privado nas decisões do governo.

Além do decreto em vigor, a iniciativa do governo anterior incluía também um projeto de lei que regulamenta a atividade do lobby. Em resposta, a Câmara aprovou uma iniciativa que já tramitava na Casa há mais de uma década.

No decreto assinado por Bolsonaro, agentes públicos são obrigados a dar transparência sobre suas audiências com representantes do setor privado “de forma padronizada e completa”, segundo a CGU, inclusive com a divulgação da relação de participantes, assuntos tratados, presentes recebidos, e interesses representados em tais compromissos.

Ao contrário do que acontecia até então, não basta mais um ministro divulgar que recebeu em seu gabinete o presidente de determinada empresa sem dar detalhes sobre os motivos da reunião e os interesses específicos daquele empresário.

Os ganhos de transparência são, sim, elogiáveis; mas sempre há um porém. Neste caso, alguns poréns.

O decreto lista uma série de exceções ao que de fato deve ser considerado “representação privada de interesses”, abrindo brechas legais que podem ser usadas para burlar a transparência exigida pela própria norma. Por exemplo: o decreto não considera lobby “o contato eventual entre agentes públicos e interessados em processos decisórios relacionados àqueles, ocorrido em eventos ou em situações sociais, de maneira casual ou não intencional”.

Essa excepcionalidade permite que ministros conversem com lobistas sem transparência, por exemplo, durante um convescote social – situação corriqueira na corte brasiliense, “exceto se dos fatos e das circunstâncias apurados puder ser comprovada a representação de algum interesse”. Quem irá apurar? Como poderá apontar tais fatos e circunstâncias? O decreto não diz.

Há, ainda, exceções para as agendas do Presidente da República e do Vice-Presidente, que não se sujeitam ao decreto. Reuniões com lobistas para tratar de assuntos considerados “sigilosos” pelo governo também ficam em sigilo no e-Agendas. Mais especificamente, os compromissos “cujo sigilo seja imprescindível à salvaguarda e à segurança da sociedade e do Estado, incluídas as atividades de segurança e de defesa cibernética” e aqueles que tenham hipóteses de “sigilo previstas em leis específicas”.

Usando dessas exceções, por exemplo, o governo poderia omitir detalhes de reuniões com empresas privadas para tratar da exportação de armas, um tema que está na ordem do dia da pauta de direitos humanos.

E, mesmo quando as exceções não se aplicam, a execução prática do decreto tem se mostrado problemática. O regulamento diz que lobistas serão recebidos por autoridades públicas em audiências, mas um monitoramento de agendas federais executado pela plataforma Agenda Transparente, um serviço da agência Fiquem Sabendo que está em versão beta para usuários de teste, mostra que diversos compromissos que tratam de interesses privados são catalogados como meras reuniões, algumas delas sem detalhes sobre a pauta ou com descrições genéricas, ao contrário do que manda a legislação em vigor.

Com efeito, de acordo com dados da CGU analisados pela Agenda Transparente, somente 1% dos compromissos cadastrados no e-Agendas desde sua entrada em vigor, em outubro de 2022, ainda na gestão Bolsonaro, foram marcados como “audiências”, o termo empregado pelo decreto presidencial para caracterizar as reuniões com lobistas. Assim, o monitoramento identificou uma série de simples “reuniões” para “atendimento de usuários de serviços públicos” em órgãos-chave da estrutura federal, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), onde mais de 130 compromissos com agentes privados foram catalogados desta maneira.

Em janeiro de 2023, já no novo governo Lula, portanto, o monitoramento da Agenda Transparente identificou que agentes privados participaram de 28% de 1.229 compromissos catalogados como “reuniões”, não sendo possível identificar com facilidade e transparência a ação de lobistas sobre o governo, o que subverte a lógica e os objetivos do decreto que normatizou as agendas federais.

A lógica regulatória estabelecida pelo governo brasileiro sobre o lobby pressupõe que o ônus de informar sobre as atividades de lobistas junto à administração federal recai sobre o Estado, e não sobre os lobistas. Os agentes privados não são obrigados a informar à sociedade sobre suas atividades, mas estão sujeitos a essa divulgação quando efetivamente executada pelo poder público. Falta o poder público cumprir a parte que lhe cabe.


André Spigariol é repórter da Fiquem Sabendo, agência de dados independente e especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI), tem como missão revelar dados e documentos do poder público escondidos da sociedade, além de formar cidadãos capazes de exercer o controle dos recursos e serviços públicos usando a LAI.

Maria Vitória Ramos é cofundadora e diretora executiva da Fiquem Sabendo.

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