Análise: nova política industrial é aspiracional, mas pode repetir erros do passado

Política industrial é assunto divisivo na economia. Para economistas contrários, diga-se, não é assim tão divisivo: a intervenção estatal, quase sempre, não traz ganhos de produtividade, gera distorções de alocação de capital e traz uma conta que será paga por gerações futuras. Os que apoiam, por sua vez, veem com bons olhos um Estado empreendedor — especialmente priorizando setores com alta agregação de valor, como costuma ser o caso da indústria, o que permitiria um crescimento sustentável. Trata-se de um desses assuntos “Fla-Flu” na economia.

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O anúncio da nova política industrial brasileira nessa segunda-feira, 22, alimentou expectativas e reacendeu velhos medos de economistas. Analistas econômicos ouvidos pela EXAME apontam que a apresentação de hoje se assemelha mais a uma “carta de intenções”, que reflete um desejo de maior complexidade econômica e proteção frente à fragmentação geopolítica cada vez mais presente desde a pandemia de coronavírus.

O próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) vem dando destaque a um processo que chamou de “slowbalization” e de aproximação de cadeias produtivas. Mas, para quem observa os movimentos da economia, o novo plano de R$ 300 bilhões de apresentado nesta segunda-feira traz erros conhecidos, como subvenções, créditos tributários, compras diretas e priorização de setores específicos.

A política industrial que está sendo lançada é mais do que a gente já conhece no passado. Fica a dúvida se vai funcionar de fato. Não há muita ideia em relação à métrica de eficiência desses programas”, diz Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados. “É um programa extremamente ambicioso em termos de financiamento em gastos no momento que a situação fiscal brasileira não permite isso.”

O mercado financeiro parece concordar. O Ibovespa fechou o dia em queda de -0,81%, aos 126.602 pontos. Pesou para os investidores a preocupação fiscal e a política industrial bilionária anunciada. Além disso, o dólar fechou em alta de 1,24%, vendido a R$ 4,988.

Para Vale, os governos petistas não sinalizaram em nenhum momento que buscaram entender o que foi eficaz ou ineficaz nas políticas industriais dos mandatos anteriores de Lula e no da ex-presidente Dilma Roussef.

Esse tipo de ideia, que sempre se colocou no PT, de fazer grandes projetos de investimento para tentar gerar crescimento e isso gerar arrecadação e diminui a dívida lá na frente, nunca deu certo no passado. A gente infelizmente está tentando reviver o que não deu certo”, diz Vale.

Detalhes

Costuma-se dizer que o “diabo mora nos detalhes”. Em política industrial, isso parece ser ainda mais verdade. “O posicionamento do governo, a meu ver, é bem-vindo, mas o diabo mora nos detalhes”, diz Felipe Novaes, economista e analista de Indústria na Tendências Consultoria. “Podemos concordar sobre as intenções e metas aspiracionais, mas muito pode dar errado nos meios e nos instrumentos.”

Segundo Novaes, ao se analisar as críticas, é importante frisar que não se trata de “antagonismo” ou “torcer contra” o desenvolvimento industrial do país. “Mas entender, entre os instrumentos elencados, se eles são reconhecidos tecnicamente como a melhor via para se fazer isso ou não”, afirma. “Pouco se fala da implementação.”

Algumas dúvidas, como levantou o perfil Valor Agregado, no Twitter, seguem em aberto, como o que há de novo na política; o que há de velho que funcionou (ou não); por que funcionaria agora; e se a nova medida seria suficiente para estancar a desindustrialização do país.

O presidente Lula apresenta a nova política industrial do governo em Brasília na segunda-feira, 22

Um ponto elogiado da apresentação foi a vontade de melhorar processos burocráticos e de propriedade intelectual.

“Vemos com bons olhos iniciativas do ponto de vista de transferência de tecnologia, por exemplo. Foi enfatizada a questão de acelerar procedimentos de propriedade intelectual, melhora de arcabouço regulatório de inovação”, afirma Novaes, da Tendências. “Têm iniciativas do governo que vão na direção de o Estado ser um catalisador da iniciativa privada.”

Vale, da MB Associados, concorda com ressalvas. Segundo ele, pensar a questão de acelerar o processo de patentes e reforçar qualificação dos estudantes, com centros tecnológicos, precisa sempre ser feito e incentivado.

“Mas o grosso do pacote com grandes investimentos, grandes projetos, grandes comitês e grupos de trabalho é uma coisa que não é exatamente o que a gente precisava agora”, afirma. “É um processo que a gente precisaria ter de uma retomada mais consistente do esforço fiscal pros próximos anos, políticas de melhora regulatória que aparecem muito pontualmente na proposta do governo.”

Os economistas questionam a viabilidade dos recursos anunciados. “Permanece como um ponto de análise se é viável essa reserva que foi definida a partir do BNDES, de R$ 250 a 300 bilhões”, pontua Novaes.

Para Roberto Ellery, professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB), o BNDES está ressuscitando a TJLP, taxa de juros subsidiada, ao criar novos títulos para oferecer crédito barato.

“Os dados recentes mostram que o fim da TJLP abriu espaço para o setor privado ofertar crédito. Isso vai mudar com essa nova política. Além disso, não vi nenhum debate sobre cotas de exportação. É possível medir a eficiência de uma empresa quando ela exporta. Isso significa que o produto é competitivo. Nada sobre isso foi debatido”, diz.

Ele resume a política industrial lançada pelo governo como “mais do mesmo”. Segundo ele, o PT repete programas que deram errado no passado e que não impulsionaram o crescimento da indústria ou da economia.

A indústria pelo mundo

Não se pode alegar, porém, que o governo Lula esteja desalinhado com o zeitgeist do seu tempo. Pelo mundo afora, pululam políticas industrias de todo tipo. Em especial, os Estados Unidos nos últimos anos investiram pesado em tentativas de nacionalizar a indústria de microchips (Chips Act) e tecnologias para a transição energética e infraestrutura (o chamado Inflation Reduction Act).

O número de legislações e normativas que ampliam políticas industriais está em crescimento constante no mundo, como mostra o gráfico extraído do artigo A nova economia da política industrial”, uma revisão da literatura sobre o tema feita no ano passado pelos economistas Réka Juhász, Nathan Lane e Dani Rodrik.

Os autores destacam, por exemplo, que países de renda mais alta — como os do G20 — são grandes usuários de política industrial. Embora a política industrial seja praticada em todo o mundo, ela pode, de fato, ser mais prevalente em países de renda mais alta.

Para Vale, da MB Associados, tentar comparar com os Estados Unidos e China, como foi falado na apresentação do novo plano, “não faz muito sentido”.

“Os Estados Unidos estão pagando um preço fiscal enorme do que está sendo feito e está se cobrando a dívida do que fez de excesso de política industrial nos últimos anos sem a garantia também de que vá funcionar”, afirma. “No caso chinês, o país cresceu com muita intensidade, mas não foi particularmente por conta de política industrial. Foi a quantidade absurda de gente que migrou da área rural para a área urbana que fez esse crescimento estrondoso. No Brasil, aconteceu a mesma coisa nos anos 1950, 1960 e 1970. O crescimento brasileiro era enorme, não por conta de política industrial, mas por conta de um processo forte de urbanização.” 

Política industrial em debate

Uma das virtudes da revisão feita por Rodrik e seus coautores, na opinião do professor de economia da FGV, Samuel Pessoa, foi a “melhor mensuração desse tipo de política pública (com ajuda de inteligência artificial) e em trabalhos muito benfeitos, em termos de determinação de causalidade, que mostram sucesso de políticas industriais em casos específicos”. 

A volta da política industrial trouxe atenção para a escassez de dados sistemáticos, e a academia começou a avaliar a prática global. Trabalhos recentes esclareceram questões conceituais em torno da política industrial e fornecem uma visão sobre a prática contemporânea”, escreveram Rodrik e seus coautores.

Um exemplo nesse sentido é a avaliação sobre a política para Indústria Pesada e Química (HCI, na sigla em inglês) na Coreia do Sul, levada a cabo pelo então presidente Park Chung-hee. Segundo os autores, setores escolhidos para as políticas de incentivos de fato se destacaram no longo prazo, levando a uma vantagem comparativa.

Para os autores, se “o diabo está nos detalhes” e, para acertar na política industrial, muitos desses detalhes pesaram a favor. “A pesquisa emergente, embora incompleta, está esclarecendo onde e quando as políticas funcionaram e seus mecanismos”, alegam.

O governo Lula 3 precisará demonstrar rapidamente que dará atenção aos detalhes e às boas práticas internacionais — e, sobretudo, que aprendeu com o passado.



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