Elizabeth Holmes, da Theranos, é declarada culpada em quatro acusações

Dois anos após a morte de Steve Jobs, em 2018, lá estava alguém criando uma empresa revolucionária, apresentando-se no mesmo estilo ascético – uma malha preta de algodão que ia até o pescoço, falando pausadamente em como ia transformar o mundo. E, desta vez, era uma mulher.

Melhor ainda: a empresa não iria produzir mais um aparelho para saciar nossa fome de consumo; ela iria transformar o mercado da saúde, com uma tecnologia capaz de realizar com apenas uma ou duas gotas de sangue (uma picadinha no dedo, não mais) os testes que os laboratórios fazem com várias ampolas (preenchidas com assustadoras agulhas que penetram a veia do paciente).

Há dois anos já se sabe que o conto da fada não era assim tão perfeito. E no último dia 14 a história finalmente se tornou, em vez de fonte de inspiração, uma lição de moral, repleta de ensinamentos sobre a cultura do empreendedorismo no Vale do Silício, o modelo de negócios incentivado pelos investidores, os problemas de governança corporativa em startups e as brechas nas diversas instâncias regulatórias dos Estados Unidos.

A empresa em questão era a Theranos – uma palavra que misturava terapia e diagnóstico, em inglês. Sua fundadora, Elizabeth Holmes, CEO da companhia que criou em 2003, quando tinha apenas 19 anos, foi condenada pela SEC, a agência reguladora do mercado financeiro americano, a pagar uma multa de 500.000 dólares e devolver uma montanha de ações da companhia, além de ficar proibida de dirigir ou ser executiva de qualquer empresa pública pelos próximos 10 anos (ela ainda pode dirigir a Theranos, que é uma companhia privada, mas é pouco provável que a Theranos dure muito).

Segundo a SEC, Elizabeth e seu assessor direto, Sunny Balwani, então presidente da Theranos, cometeram uma fraude de mais de 700 milhões de dólares. A Theranos afirmou, em comunicado, que estava “contente por fechar esse assunto” e que agora “anseia por desenvolver sua tecnologia”.

Talvez Elizabeth Holmes tenha acreditado demais em si mesma. Em 2009, seus esforços de desenvolver a tecnologia revolucionária estavam sendo sufocados pela falta de dinheiro. Então o engenheiro de software Sunny Balwani lhe garantiu uma linha de crédito que tirou a Theranos do risco de fenecer, e se tornou presidente da companhia, de acordo com a sentença da SEC.

E aí tudo se acelerou. As palestras de Elizabeth, suas aparições na plataforma de discursos TED, as reportagens na imprensa. Não é que ela tenha mentido diretamente aos investidores. Elizabeth mentiu para os jornalistas, e depois mostrou aos investidores as glamourosas reportagens que os jornalistas escreveram – em publicações de prestígio como a Wired, a Fortune, o Wall Street Journal.

Ela mentiu sobre quantos testes as suas máquinas eram capazes de realizar, mentiu sobre o estágio de desenvolvimento da tecnologia, mentiu sobre a receita.

A Theranos pegava as reportagens elogiosas e as encadernava, nos relatórios de divulgação para investidores. Seus empregados escreviam informes grandiosos e colocavam os logos de grandes companhias farmacêuticas, dando a impressão de que elas endossavam seus produtos.

E depois passou a mentir diretamente aos investidores. A companhia exagerou sua receita de 2014 quase mil vezes: disse que faturara 108 milhões de dólares; o número verdadeiro era 100 mil dólares.

Para 2015, a Theranos estimava uma receita de 1 bilhão de dólares. Dizia, segundo a SEC, que sua tecnologia havia sido usada pelos militares nos campos de guerra no Afeganistão, fazendo crer que um contrato com o governo estava próximo.

Não é à toa que a Theranos foi considerada um dos mais promissores unicórnios – startups com valor acima de 1 bilhão de dólares – dos Estados Unidos. Sua cotação, calculada pelo tanto de dinheiro obtido em relação ao quanto de participação na empresa cedido, estava ali pelos 9 bilhões de dólares.

Por incrível que pareça, esse tipo de situação não é incomum no Vale do Silício. Produtos, especialmente os mais complexos, costumam sofrer atrasos, e os departamentos de marketing são conhecidos por apresentar como pronto o que é ainda projeto. Basta ver a Tesla, a incensada fabricante de carros elétricos, que tem uma tradição de nunca cumprir os cronogramas de seus lançamentos (e anda com dificuldades, porque seu sucesso depende de conquistar um mercado de classe média para o qual não consegue produzir carros em quantidade suficiente).

Quase qualquer companhia de aparelhos tecnológicos já mostrou em exposições produtos que não estavam prontos de verdade. Mas a Theranos superou todas essas companhias. É possível que tenha sido excesso de confiança.

Elizabeth garantia que as máquinas criadas pela Theranos podiam realizar 90% dos testes feitos com equipamentos convencionais. Isso levou a Theranos a um acordo com a rede de farmácias Walgreens para implantar esses testes para o público. Porém, em 2013, quando chegava a hora de fazer valer o acordo, a Theranos não estava à altura de suas promessas. Em vez de admitir o fracasso, ou pelo menos pedir mais tempo, Elizabeth optou por mentir.

A Theranos montou a operação nas farmácias, mas usava seus equipamentos para fazer apenas uma dúzia de exames (os equipamentos de segunda geração, que seriam capazes de fazer centenas de exames, jamais chegaram a funcionar). Ela realizava outros 50 ou 60 exames em equipamentos comprados de outras empresas e modificados para colher amostras de sangue com uma leve picada no dedo. E os outros exames, mais de 100 deles, eram feitos com o uso de aparelhos não modificados de outras companhias, enviados para laboratórios terceirizados.

Convenhamos: é difícil promover a tão cobiçada disrupção de uma indústria usando os produtos dessa própria indústria. Seria como se as máquinas de fotografia digitais usassem filmes, revelassem as cópias em laboratórios escondidos em porões, e depois enviassem as fotos para os clientes dizendo que eram resultado de um inovador processo digital.



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