Na China, Lula marcará papel do Brasil e dos Brics num mundo fragmentado, diz especialista

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva desembarca na China neste domingo, 26, acompanhado de uma comitiva com mais de 200 empresários, parlamentares e membros do governo. Será o primeiro chefe de Estado que visitará o presidente chinês Xi Jinping desde que ele se reelegeu. Cercada de expectativas, a visita de Lula à China deve ser observada por dois ângulos: no curto prazo, anúncios e negócios devem transcorrer normalmente; no longo prazo, é importante ficar atento aos sinais que o Brasil emitirá ao mundo na sua relação com gigante asiático, especialmente na discussão de tornar os BRICS, grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, em um fórum de discussão relevante.

Essa é a avaliação de Diogo Castro e Silva, que liderou a operação do conglomerado de investimento chinês Fosun na América Latina de 2015 a 2019. Para Castro e Silva, o mundo hoje é muito diferente do que Lula encontrou em suas visitas à China, em 2004 e 2009. “Obviamente, há um objetivo de curto prazo de voltar a relação a um padrão normal depois dos quatro anos do governo precedente que, apesar de o nível dos indicadores econômicos da relação não serem ruins, do ponto de vista político foi uma relação quase inexistente”, diz. “Se a visão for voltar a um mundo pré-2010, essa é uma quimera que não vai levar a algum porto.”

O português avalia que o mundo hoje está sob o signo da fragmentação — enquanto no começo dos anos 2000 a globalização seria o zeitgeist do tempo. Na China, particularmente, Castro e Silva avalia que a estrutura das instituições mudou de forma significativa. Para ele, as reformas estruturais de Deng Xiaoping em 1989, que partiam de três pilares — modelo político descentralizado, primazia das reformas econômicas e política externa discreta — simplesmente já não existem. “Os três pilares foram aniquilados. O modelo chinês é outro”, afirma. “Hoje há uma liderança única, aparentemente forte, mas muito mais errática porque está concentrada nas mãos de um homem. A própria qualidade da política pública chinesa se deteriora.”

CASTRO

DIOGO CASTRO E SILVA: Os três pilares das reformas chinesas foram abandonados e país hoje tem uma liderança única, forte mas errática (Germano Lüders/Site Exame)

China e Brasil: relação de Estados

Com isso, ele acredita que a relação chinesa com o Brasil deve ser focada primordialmente numa relação entre Estados — e menos entre agentes privados que enxerguem o Brasil como um potencial mercado de expansão, como era a expectativa no início dos anos 2000. As empresas chinesas não se tornaram corporações globais, em sua avaliação, processo que ficou evidente desde a intervenção do governo chinês no IPO do grupo Ant.

Para o Brasil, Castro e Silva avalia que muitos anúncios devem ser feitos, em especial de mais acesso do agronegócio ao mercado chinês e investimentos em infraestrutura por aqui, e sugere observar com cautela as movimentações em torno do BRICS, que sinalizarão o longo prazo da relação do Brasil com a China e com o mundo. Leia a íntegra da entrevista.

Qual a importância dessa visita de Lula?

Começo por falar que é um mundo muito diferente de 2004 e de 2010 — o último ano de Lula na presidência. A grande filha da globalização é a China. Se quisermos estender, os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) são um pouco os filhos da globalização. Hoje, vivemos o mundo da fragmentação, e não da globalização. Esse mundo é muito diferente do mundo de uma década atrás. Há um fator de curto prazo importante na visita de Lula à China, sobretudo dada a relação comercial com a China. Obviamente, há um objetivo de curto prazo de voltar a relação a um padrão normal depois dos quatro anos do governo precedente que, apesar do nível dos indicadores econômicos da relação não serem ruins, do ponto de vista político, foi uma relação quase inexistente. Então, essa é a parte mais fácil da visita. A parte mais complexa: qual o papel que o Brasil vai assumir hoje na relação com a China. Aí, é o grande desafio. Se a visão for voltar a um mundo pré-2010, essa é uma quimera que não vai levar a algum porto. Até diria mais: fazer um equilíbrio entre China e Estados Unidos hoje é muito complexo — e tende a ficar mais complexo. Ou seja, os dos países não estão se aproximando. Pelo contrário, estão distanciando. É o exemplo de um sujeito que fica com os pés em duas canoas e as canoas se abrem, ficando numa posição de ginástica quase impossível. Além disso, os próprios [países do] BRICS, enquanto foram, vão ficando esgarçados. Não só pela relação com os EUA, mas se você pegar a relação China e Índia. É uma relação que tende a se deteriorar também. Sem falar no que hoje é um pária, que é a própria Rússia. É um equilíbrio que acho muito difícil, e não vejo como possível regressar a um mundo idílico do pré-2010 do tempo do Lula 1 ou 2. A China era diferente, estava numa caminhada para um lado e hoje vai no sentido inverso. Em curto prazo os ganhos são evidentes da estabilização da relação política. Mas me parece que esse primeiro ato é o fácil. Os difíceis são os seguintes.

O senhor mencionou um “passo fácil”. Nesta quinta-feira, 23, o governo brasileiro e o chinês anunciaram a retomada da importação de carne para a China — um passo previsível, mas importante como sinalização. Mas em termos econômicos a China enfrenta um momento diferente de sua economia e caminha em direção a um capitalismo de Estado. Afinal, como a China vê o Brasil? 

Vamos por partes. O grande modelo que foi criado por Deng Xiaoping em 1989 assentava em três grandes pilares, primeiramente a reforma política, assegurando que não havia liderança única, conforme tinha existido no tempo de Mao Tse-Tung. Isso acabou.

Mas pergunto: isso acabou mesmo?

O modelo político, a centralização de poder do Xi Jinping, acabou com a essência da reforma política do Deng Xiaoping. Era uma modelo de liderança coletiva, afastando a China da armadilha que sempre teve ao longo da história de quando tinha um bom imperador tudo funcionava e quando tinha imperador ruim tudo ia para o brejo. Essa reforma foi enterrada por Xi Jinping. Hoje há uma liderança única, aparentemente forte, mas muito mais errática porque está concentrada nas mãos de um homem. A própria qualidade da política pública chinesa se deteriora. É pior hoje do que há dez anos porque está menos institucionalizada e mais personalística.

A segunda reforma [de Deng Xiaping] era a primazia das reformas econômicas. Isso terminou. Hoje, a primazia não é a econômica — apesar de a economia ser fundamental. A primazia é de controle político. Isso se revela quer na política externa, quer na política interna. A terceira reforma era uma política externa discreta, de não levantar muitas ondas. Há um filósofo chinês que diz que “o mar é forte porque está mais baixo do que os rios”. Ou seja, os rios correm para o mar. Então, era muito essa filosofia. Hoje, a política externa chinesa é muito agressiva, e muito mais do que era há uma década. Então, os três pilares foram aniquilados. O modelo chinês hoje é outro. Aquilo que era os fatores favoráveis que impulsionaram o grande crescimento da China estão jogando de certa forma contra. Demografia, mercados externos, o fato de a política econômica não conseguir satisfazer todo mundo ao mesmo tempo e ser esgarçada. Começou a haver opções difíceis do ponto de vista político. A China tem um jeito de enxergar as relações num sentido muito curto-prazista no sentido dos benefícios que ela extrai das relações. Ao contrário do que pensamos, a China é uma visão de que cada transação tem que ser um ganho. Não existe aquela noção de que vai deixar de ganhar hoje para ganhar amanhã. Para a China, o Brasil, como outros países da região, é visto em última análise como uma alternativa — porque há várias, como Austrália, e ela tenta diversificar e não deixar que nenhum fornecedor seja dominante em algum segmento ou atividade –, um provedor de bens que são fundamentais, como agrícolas e minérios. Não é tanto, como foi em meados da outra década, como a fonte de expansão de empresas chinesas, no sentido de empresas chinesas privadas que olhavam para o mercado de consumo brasileiro como alternativa de expansão.

O senhor pode explicar um pouco mais?

A criação de corporations chineses privados terminou em certa medida.  Hoje, tem empresas estatais, que vão continuar a investir. Mas não tem já aquela visão de criar as empresas chinesas, como o Japão e a Coreia fizeram com os eletrônicos. É muito mais uma relação mercantilista no sentido do termo do que uma relação ligada à globalização.

O senhor liderou um dos principais conglomerados de investimentos chinês, o Fuson, na América Latina. Avalia que mudou a orientação das empresas chinesas em relação à região?

Mudou no sentido da visão que as empresas privadas tinham de virar corporações globais. Isso implica uma série de mudanças. Quando se olha para uma empresa global americana, o CEO pode ser indiano, o CFO pode ser coreano ou americano. Essas empresas de alguma forma de tornaram global corporations, multinacionais verdadeiras. Esse processo que estava em curso na década passada nas corporações chinesas meio que acabou com a intervenção que a China fez no IPO do AliPay, que foi travado. A partir daí, teve um efeito: ao se misturarem muito com o Estado, as próprias corporações chinesas são vistas – e podem até não ser – como um braço do Estado chinês. Veja o caso do TikTok. Então, a não liberação do setor privado para criar global corporations implicou que o Estado acaba por ser onipresente quer do ponto de vista formal quer do ponto de vista informal — ou do ponto de vista do próprio receptor desse investimento. Então, essa dinâmica privado-privado acabou na década passada.

Nos Estados Unidos, por exemplo, discute-se muito um excesso de entrada de capital chinês na América Latina. No Brasil, temos uma necessidade enorme de infraestrutura, e um dos grandes bolsos do mundo é a China. Essa viagem pode selar mais acordos nessas áreas?

Sim, porque é uma agenda de Estado para Estado. A agenda privado para privado vejo menos presente. A China é um bolso grande, mas é sempre nessa visão Estado-Estado.

Do ponto de vista das empresas brasileiras, há espaço para ampliar a exportação de outros bens — além das commodities? Ou não tem como competir?

Há dois tipos de relação comercial. Hoje, o Brasil tem uma relação comercial com a China off-shore. Ou seja, limita-se a enviar exportações. Algumas empresas brasileiras, em alguns setores, têm capacidade para ter presença “onshore”. Pensemos, por exemplo, no setor de açúcar e álcool, onde o Brasil tem multinacionais. Em alguns setores o Brasil tem empresas com essa capacidade. Agora, o grande desafio é que a China precisa de uma estratégia específica. É um mercado muito grande, então para ter uma presença “onshore”, isso consome de algum jeito muitos recursos corporativos para desenhar e executar essa presença. Provavelmente, não consegue sequer pensar numa presença nacional, mas em algo regional. Mas existem alguns segmentos, mesmo o setor de alimentos por exemplo na parte de alimentos saudáveis, nos quais o Brasil poderia ter uma presença “onshore”. Mas demanda tempo e uma estratégia de execução específica. É muito mais complexo para qualquer companhia.

No curtíssimo prazo, o setor mais beneficiado deve ser o agronegócio. Mas qual a mensagem mais importante que essa visita vai deixar, por exemplo na parte de mudanças climáticas, entre outras?

Começamos a entrar num contexto geopolítico mais largo. A China é um país que retomou o seu curso natural na história: durante toda a história sempre foi maior economia do mundo. Só nos últimos 200 anos que ela não foi. Então a retomada da importância da China no contexto econômico mundial é um pouco como retornar à média. Ao mesmo tempo, tem muita dificuldade em assumir um papel global porque é muito, de algum jeito, defensiva. Costumo dizer: quando um país constrói uma muralha, ele quer que o mundo não venha até ele. É uma relação de medo com o mundo. E sempre esteve presente na história da China. Então, a China tem dificuldade em assumir um papel global, que implica responsabilidade de prover “bens públicos” e políticas públicas mundiais. Grande parte da razão que os Estados Unidos assumiram esse papel foi — além do poder econômico — porque se dispuseram a prover ao mundo certos bens públicos globais, que dá alguma forma assegurável de questões que, embora a longo prazo favoreçam os EUA, não tinham ganho claro na largada para os EUA. Ou seja, era um dispêndio de recursos que foram dar frutos à frente. A China tem muita dificuldade em fazer esse raciocínio. Como disse, ela enxerga sempre cada transação como de curto prazo onde tem sempre de ganhar. Então, mesmo em agendas que tem interessa, como o clima, tem dificuldade em assumir um papel mais global. E isso dificulta a implementação dessas agendas por muito que essa possa a vontade do Brasil ou outro país em questão. A China se retrai sempre para discurso de que é uma economia em desenvolvimento, mas hoje é outro país. Não pode fugir às suas responsabilidades. Então, vive muito no dilema de como assumir esse papel geopolítico global. Se o Brasil espera que ela assuma esse papel, e de alguma forma fazer algum balanço com o presidente em exercício desse conselho mundial, que são os Estados Unidos, corre alguns riscos de desapontamento no resultado.

O Brasil costuma ter um posicionamento de não se alinhar com nenhum país automaticamente…

A grande dificuldade com aquilo que sempre foi a tradição da política externa brasileira, sobretudo no tempo da guerra fria, de não estar alinhado com nenhum dos blocos, é que hoje, ao contrário da guerra fria, vivemos uma guerra real ocorrendo na Europa. Isso dificulta muito não assumir algumas posições de lado. Na guerra fria era mais fácil, pois, como o nome diz, era uma época em que não existia guerra. Hoje nem podemos dizer que estamos num mundo de guerra fria 2.0 porque temos uma guerra “quente” ocorrendo. Há uma guerra entre dois Estados soberanos. Isso é um pouco único nos últimos 50 anos. Dificulta muito esse equilibrismo.

Em termos de expectativa, quais as principais mensagens que está observando dessa comitiva à China?

Anúncios devem ser muito rituais diplomáticos, meio padrão. Eu olharia muito sobre o que vai ocorrer na questão dos BRICS. Nessa agenda, é onde existe mais vontade de o Brasil turbinar – até com a assunção de uma ex-presidente, Dilma Rousseff, como presidente do banco dos BRICS – a agenda como um fórum como alternativa ao G7. Os anúncios que virão, de acordos comerciais e de investimentos de infraestrutura no Brasil, isso vai ser mais o curso normal do jogo. Vamos ter isso. Olhando para frente, essa questão dos BRICS e como sobretudo o Brasil vai querer implementar uma agenda nos BRICS. Pode haver dificuldades nessa tentativa de arranjo, sobretudo pelas relações e aos interesses dentro do bloco serem muito desconexos. A China tem uma agenda, a Índia, outra. A relação entre esses países é muito complexa. Os arranjos de segurança da Índia se confrontam com os da China. Entra a questão da Rússia e da Ucrânia, porque a Rússia é membro dos BRICS. Nos meses que virão, deve ser nesse tópico que se revelarão as próprias tendências da relação do Brasil com a China, fugindo de questões econômicas — muito importantes para o Brasil, claro. Mas, mesmo no caso de uma presidência hostil politicamente à China, o Brasil continuou a exportar muito. De alguma forma, ali tem um “piso”, que não se mexe muito.

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