Mercado de Carbono no Brasil: a bola está em campo, mas o jogo não começou

Felipe Bittencourt*

O Brasil tem uma política de mudança do clima em forma de lei (Lei 12.187) que data de 2009. Nela consta claramente a necessidade de “estímulo ao desenvolvimento do Mercado Brasileiro de Redução de emissões – MBRE”. Atualmente existem 65 países ou regiões no mundo com precificação de carbono, seja taxa ou mercado regulado. O Brasil discute o tema há anos. Teve, inclusive, um grande projeto do Banco Mundial junto ao então Ministério da Fazenda chamado Partnership for Market Readiness (PMR), que analisou a fundo os melhores caminhos, benchmark e impactos com clara recomendação de criação de um mercado regulado nacional.

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Acontece que a verdade é que o país patinou nesse tema por anos. Faltou, por mais de uma década, uma real vontade política e uma organização interministerial condizente com a importância do tema para que algo saísse do papel. E o que vimos foram diversos outros países avançando a passos largos, alguns bem próximos de nós como a Colômbia e o México.

Ano passado, houve um esforço grande em forma do Projeto de Lei 528, ainda em tramitação na Câmara Legislativa. Eu cheguei a acreditar que pelo momentum internacional criado na COP26, em novembro passado em Glasgow, o projeto seria aprovado. Contudo o que se viu foram variações de texto frequentes, tornando as minutas confusas e inviabilizando a aprovação naquele momento.

Agora, o executivo aprovou um novo decreto sobre o tema. Apesar do título não ser a criação do mercado regulado, para o bem entendedor do tema, ele cria as bases para tal mercado. Inclusive, é isso que se fala aqui no Rio, no evento Mercado de Carbono Global, que tem a presença maciça de CEOs de vários setores e ministros. O próprio presidente veio ontem aqui falar sobre o tema. Isso até me surpreendeu, afinal, o tema mudança do clima nunca foi algo em sua agenda principal.

Cabe ressaltar que entendo o decreto como o máximo que o executivo poderia fazer dentro do que a ele cabe: regulamentar um item da Lei 12.187. Além disso, não deve ser compreendido como um substituto do Projeto de Lei 528. É essa lei que irá dar toda a segurança jurídica necessária para o fortalecimento e maturidade de um mercado regulado. Vejo o decreto como um ingrediente a mais dessa agenda, um potencial impulso à aprovação do projeto de lei. Inclusive, realmente espero que tenhamos essa aprovação ainda este ano, mesmo com toda a turbulência de ano eleitoral.

O que diz o decreto do mercado regulado de carbono no Brasil?

Como adiantei, o título não é sobre criação do mercado regulado mas sim “Estabelece os procedimentos para a elaboração dos Planos Setoriais de Mitigação das Mudanças Climáticas, institui o Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa e altera o Decreto nº 11.003, de 21 de março de 2022.” Para se ter um mercado de carbono há a necessidade de se ter metas. Quem emite abaixo da meta pode vender créditos, quem emite acima da meta precisa comprar. Simples assim.

Contudo, qual é a meta? O próprio título já deixa claro que as metas não são estabelecidas neste momento, mas sim são estabelecidas diretrizes para a criação dos chamados planos setoriais. Abordarei esse tema em mais detalhe abaixo. Além disso, é criado o sistema de registro, algo fundamental para a solidez de qualquer mercado de carbono.

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Gostaria de abordar aqui também algumas disposições preliminares do decreto sobre a natureza do crédito de carbono e sobre o crédito de metano. O Artigo 2º estabelece, em seu primeiro item, o crédito de carbono como ativo financeiro. Ressalto que na Política Nacional sobre Mudança do Clima de 2009 diz que os créditos seriam “títulos mobiliários representativos de emissões de gases de efeito estufa evitadas certificadas”.

Fico na dúvida se caberia a um decreto a definição jurídica do que é um crédito de carbono. Sei também que a CVM tem receios quanto a ser um ativo financeiro. Espero que o PL528, quando aprovado, esclareça esse item.

Já no segundo item do mesmo artigo é estabelecido o crédito de metano. Ressalto que um crédito de metano é um crédito de carbono. Temos diversos projetos de créditos de carbono no Brasil e no mundo ligados ao metano, por exemplo, créditos de captura e queima do metano em aterros sanitários. Entendo então que essa separação e nova nomenclatura tem como objetivo único a contabilização em separado das reduções de metano no Brasil.

O motivo disso seria para facilitar o reporte nacional da meta de redução de metano no âmbito do compromisso que o Brasil assumiu na última COP. Se for apenas isso, ok. Se for algo para criar depois um mercado específico para créditos de metano, na linha do RenovaBio, com limitação do mercado comprador, seria um tiro no pé. Mas não acredito que isso irá acontecer.

Quem estaria coberto pelos planos setoriais, ou seja, que setores estariam sendo abordados no Mercado Regulado?

O decreto não nomeia textualmente quais setores que seriam regulados, mas faz isso de maneira indireta indicando ser os setores cobertos pelo Art. 11 da Lei no 12.187/2009. Estes são: geração e distribuição de energia elétrica; transporte público urbano e nos sistemas modais de transporte interestadual de cargas e passageiros; indústria de transformação e na de bens de consumo duráveis; indústrias químicas fina e de base; indústria de papel e celulose; mineração; construção civil; serviços de saúde; agropecuária.

Temos um grupo substancial de setores e empresas representadas, algo realmente robusto e amplo. O que mais chama a atenção aqui é a presença da agropecuária. A relação da agropecuária com a mudança do uso do solo e desmatamento é amplamente discutida. Muitos acreditavam que pela força do setor, ele não seria regulado agora mesmo sendo o perfil de emissão brasileiro altamente ligado ao desmatamento.

Mas, está presente e isso é bom por vários motivos: (i) mostra a consistência da política pública em abordar todos os setores mais importantes no tema, (ii) está em linha com compromissos net zero assumidos por grandes empresas do setor e (iii) abre portas para diversas oportunidades para o setor agrícola. Há um potencial enorme de geração de créditos de carbono pelo aumento do estoque de carbono no solo por meio de agricultura regenerativa além, claro, pelo plantio de floresta.

Qual o objetivo dos planos setoriais e como funcionará essa dinâmica?

O objetivo último dos planos setoriais é o estabelecimento de meta de redução de emissão. Na verdade, de trajetória de redução. Afinal, a meta de longo prazo está dada pelo artigo 4 – parágrafo único e pelo artigo 12 que fazem referência à NDC brasileira. Ou seja, a meta dos planos setoriais é ser netzero em 2050, assim como o Brasil assumiu como meta no âmbito da ONU.

Os setores poderão apresentar suas estratégias e curvas de descarbonização. Contudo, os planos setoriais, e suas metas, serão estabelecidos pelo MMA, ME e ministérios relacionados. Estes planos deverão ser aprovados pelo Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima. Ou seja, quem realmente bate o martelo sobre a meta setorial será o executivo.

O decreto como um todo é bem amplo e aberto. Um bom exemplo disso é o artigo 5º que fala sobre tratamento diferenciado que poderá ser dado em diversos casos. Vou citar alguns exemplos aqui. Fala-se sobre categoria determinada de empresas e propriedades rurais e de faturamento. Entendo que aqui pode-se definir um limite mínimo de área de propriedade para ser regulada ou de faturamento mínimo de empresas a estarem no mercado regulado.

Aborda-se também níveis de emissão, o que é bem comum em outros países. Por exemplo, pode-se incluir apenas empresas que emitam acima de um limite como 20.000 ton por ano. Mas há itens muito abertos a discussão como características do setor econômico e região de localização. Veremos como depois isso será regulado. Eu até entendo que localização geográfica pode ser um critério se considerado áreas não conectadas ao Sistemas Interligado Nacional (SIN) de energia elétrica. Afinal, em tais áreas a geração de energia é térmica. Além disso, não vejo muito motivo.

Ainda no artigo 5º fala-se sobre a possibilidade de cronogramas diferenciados para os setores. Mesmo que regulados, alguns setores podem levar anos para realmente estarem sob um regime de mercado de carbono, ou seja, com reais limites de emissão. Aqui vejo uma preocupação com a efetividade do decreto. Ao mesmo tempo, entendo que cabe mesmo a uma lei determinar isso e não a um decreto. Para mim da maneira que está ficou solto demais com possibilidade do lobby de empresas forçar que o compromisso setorial seja jogado bem pra frente no tempo.

Quanto tempo os setores terão para se preparar?

O artigo 12 diz que os setores poderão propor as trajetórias de descarbonização em 180 dias prorrogáveis por mais 180 dias. Ou seja, lá se vai um ano. Depois disso, o governo irá então propor os planos setoriais. Colocando isso no tempo, considerando uma visão otimista, temos:

  • Maio/2022: publicação do Decreto
  • Maio/2023: Trajetórias de descarbonização propostas pelos setores
  • Dezembro/2023: divulgação planos setoriais pelo governo
  • Janeiro a Dezembro/2024: empresas monitorando suas emissões
  • Março-Maio/25: empresas submetendo ao registro nacional seus respectivos inventários de GEE do ano anterior verificados por uma terceira parte

Ou seja, se tudo ter certo, creio que apenas em meados do ano de 2025 realmente veremos empresas comprando e vendendo créditos de carbono no mercado regulado. Quais empresas? Ai depende do cronograma diferenciado que o governo irá propor para cada setor. Além dos marcos acima, preciso comentar que para se ter a robustez jurídica de um mercado, há necessidade de aprovação de uma lei (ex: PL 528).

Como funcionará o registro de emissão?

O decreto cria o Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SINARE), sob gestão do MMA. Particularmente eu acho que seria mais eficiente deixar tal registro no MCTI no já existente SIRENE – Sistema de Registro Nacional de Emissões. Lá é onde, por exemplo, os inventários nacionais são disponibilizados. Além disso, existe há anos discussões no MCTI de ampliar o registro para inventário de empresas. Pelo menos há menção no Artigo 8º V § 5º do decreto que o SINARE será compatível com o SIRENE.

De qualquer maneira, independente onde é registrado, o importante é que o registro é fundamental para a consistência de qualquer tentativa de mercado de carbono visto que agrega a transparência necessária para o processo. Toda a lógica do chamado MRV (Monitoramento, Reporte e Verificação) seria ali então registrado e isso engloba tanto os inventários de GEE das empresas como os projetos de créditos de carbono a serem usados no mercado regulado.

No Artigo 11 o decreto permite o registro de outros itens não necessariamente correlacionados diretamente à créditos de carbono e ao mercado de carbono regulado. Ou seja, itens que podem não gerar créditos de carbono e, portanto, não seriam utilizados para o atingimento das metas das empresas. Alguns desses itens, ao meu ver, podem sim gerar créditos de carbono: carbono de vegetação nativa (desde que plantada), carbono no solo (ex:  via práticas agrícolas regenerativas) e carbono azul (mangue), por exemplo, já são projetos de carbono no mercado voluntário. Outros itens passíveis de registro sem relação nenhuma como créditos de carbono são: (i) pegadas de carbono de produtos, processos e atividades e (ii) unidade de estoque de carbono. O registro de pegadas de carbono creio que servirá para termos um banco de dados nacional de produtos e seus respectivos impactos. Assim, empresas brasileiras poderão mostrar que seus produtos são mais sustentáveis que concorrentes internacionais.

Já o registro de estoque de carbono entendo que está presente no decreto mais para abrir uma porta futura na linha de pagamentos de serviços ambientais. Afinal, convenhamos, créditos de carbono é fluxo e não estoque. Ambos esses itens propostos de registro são sim Interessantes, mas não era algo necessário para esse decreto, afinal, o objetivo é fomentar o mercado de carbono.

Considerações finais

1- O decreto não cria um mercado regulado de carbono como muito foi divulgado. Ele cria as bases para um futuro mercado; O decreto não substitui o PL528. Precisamos aprovar essa lei para dar garantia jurídica e definições para o futuro mercado de carbono;

2- O decreto tem sim valor, e muito. Afinal é mais um passo a caminho da necessária descarbonização do Brasil. Vale ressaltar que é o passo mais importante no âmbito da construção de um mercado regulado desde 2009.

3- O decreto em si não deveria impactar preços dos créditos de carbono no mercado voluntário no curto prazo, mas sim no médio prazo. Por mais que aumenta a expectativa de demanda de créditos no futuro, a real demanda pelos mesmos ainda demorará alguns anos.

4- O decreto aumenta a visibilidade do tema carbono em diversos setores da economia e fará com que as empresas dos setores se unam e discutam no curto prazo as proposições de trajetórias de descarbonização em seus respectivos setores

Há anos respondo que “sim” quando questionado se o Brasil terá um mercado regulado de carbono. Sempre digo que a pergunta certa não é “se” mas “quando”. Com o decreto, demos mais um passo nessa direção. Ainda não marcamos o gol, mas pode-se falar que agora a bola está em campo. Fica a incerteza se a estratégia de jogo será de ataque (metas arrojadas e setores entrando no mercado no curto prazo) ou de defesa (lobby setorial postergando a entrada de setores e deixando a maior parte da meta para daqui há décadas). Mas uma coisa é certa: é esperado que os jogadores (as empresas) se preparem o quanto antes para o jogo.

*Felipe Bittencourt é fundador e CEO da WayCarbon

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